1968
04 de Novembro
Segunda-feira, 16h00
Navio UÍGE. Com cinco dias de viagem, neste grande
navio, eu e todos os camaradas, esperamos com suprema ansiedade o último dia,
para alcançar a tão almejada liberdade. Estamos convencidos que este dia é amanhã e hoje
a última noite. Também se houve dizer que desembarcamos na Quarta-feira de
manhã. Outros dizem de tarde, porque o barco se atrasou devido à pouca carga
que transporta nos porões.
A viagem, para
mim, tem sido ótima e para todos os camaradas que viajam comigo neste camarote
que tem o número 333.
Há alguns camaradas que têm passado um mau bocado com o
enjoo.
A festejar o regresso
Este grande navio, da nossa Marinha Mercante, levantou âncoras
na Quinta-feira, dia 31, às duas horas da madrugada e embarcamos no dia
anterior às 20 horas.
Aquilo…! Nunca vi tanta pressa e confusão! Parecia um
verdadeiro êxodo! O navio UÍGE estava fundeado ao largo por o cais não tem
profundidade suficiente para navios deste calado e, todos nós,
conjuntamente com as bagagens, fomos transportados, até ele, nas barcaças da
Marinha.
A rapaziada da CCS, do Quartel-General, foi para o cais às 14 horas de Quarta-feira, embora só
começasse-mos a embarcar às 20, por ter havido o carregamento de outras cargas
para os fundos dos porões e ter atrasado o embarque da maior parte das
Companhias operacionais.
Enquanto esperávamos pelo sinal para nos formarmos iam-se
trocando comentários, neste ou naquele grupinho, uns de pé, outros sentados na
bagagem, a pouca distância uns dos outros.
Um dizia:
- Eh pá, já tenho saudades dos bifes da Portugália!
Logo outro atacou:
- E eu das canecas!
- E eu das sopeirinhas¹ de Lisboa!
Ironizou ainda outro.
- Ai que saudades eu tenho do cheiro do ar da serra e dos
montes da minha terra; do cheiro da carqueja, do carrasco, da urze… e falava da
prometida que ficou, entre serras, à sua espera, tecendo entre outros
predicados, que era a moça mais graciosa da aldeia.
Acometendo logo um
de seguida com a “boca” do costume:
- Eh pá! Estás pr’aí com essa lengalenga e a esta hora já ela caiu nos braços doutro morcão!
Outro deixava
transparecer, através do brilho que emanava dos seus olhos, a ansiedade que
corria em sua alma para apertar nos braços o filho, já grandote, que não
conhecia.
Há sempre nestes grupos um ou dois gajos à espera de uma deixa para “mandar bocas”
e logo começou um com a frequente “boca
foleira” que, não vou aqui referir, por acatamento ao desafogo do camarada.
Havia um que dizia, com os olhos rasados em lágrimas, não
sentir grande alegria em voltar, pois já não tinha o Pai e a Mãe à sua espera como
os tivera à partida na hora da despedida. O Pai terá morrido, ao que diz, de
desgosto e a Mãe, pouco tempo depois, ‘caiu’ numa cama não mais se levantando.
Espera, com o seu regresso, que ela volte a andar para irem, em promessa, rezar
a Fátima.
Despedi-me de todos os camaradas e superiores da secção. O
meu chefe, à surdina, ainda me ‘prega’ um
sermão que, cá para mim, encaixei por conter algumas verdades, embora, como é
óbvio, não gostasse nada deste «puxão de
orelhas».
Nestas idades, quando se tem pouco mais de 20 anos, não
gostamos muito de ouvir estes «lembretes».
Somos novos, rebeldes e irreverentes; ateamos as nossas fogueiras com o fogo da
alma e depois queimamo-nos. Temos, ainda, uma vida a vencer pela frente e
muitas vezes, senão quase sempre, pagamos por isso, mas ao menos que saibamos
reconhecer e daí fazer a necessária aprendizagem para que, no futuro e no
momento próprio, possamos corrigir as nossas ações.
O furriel Oliveira, o cabo Nora, o cabo Orestes e outros
camaradas, foram despedir-se de mim ao cais. Também aqui, o cais estava repleto
de camaradas a despedirem-se dos que partiam a caminho da “peluda” e, com certeza, a rezarem para que o seu regresso esteja
para breve.
Bem! Tudo ficou para trás! Não levo saudades comigo e, com
certeza, também não terei deixado nenhumas! Muita coisa, senão tudo, será para
esquecer. Não há boas recordações e creio que poucos as levarão.
Se alguma vez quiser recordar, deitarei mão deste diário e
de outros apontamentos em folhas soltas, se a memória me falhar. E, porque Stendhal é senhor da seguinte citação: «um livro é um espelho que se passeia ao
longo de um caminho. Tão depressa reflete aos nossos olhos o azul do céu, como
o lodo dos lamaçais das bermas», só Deus sabe se, num longínquo dia, com
base nestas narrativas, valerá a pena escrever umas memórias.
Neste período de tempo, se bem, (mal), ajuízo pelas
narrativas apocalípticas contadas à mesa dos cafés e esplanadas, pelos heróis
do ‘mato’; pelos heróis do blá, blá,
blá das Repartições do ar condicionado…, muitos levarão consigo traumas e
pesadelos que os consumirão para o resto das suas vidas.
Quando vagueava pelas ruas de Lisboa, ficava impressionado
quando via alguns indivíduos a atirarem-se para o chão, e rastejarem à procura
de um abrigo num qualquer obstáculo, ao estrondo de qualquer ratter produzido por um escape de
automóvel mais ruidoso.
Um meu vizinho regressou de Angola sem uma orelha que lhe
foi arrancada à dentada por um “turra”,
numa luta de corpo-a-corpo. Mas, ele exibia como troféu, e a modos de compensação,
duas orelhas negras, cortadas a sabre, dentro de um frasco, mergulhadas em
formol.
Ouvia contar casos de indivíduos que dormiam com granadas
debaixo da cama com medo que os “turras”
lhes batessem à porta a acertar contas.
Contou-me um, em jeito de anedota,
que tinha uma amante russa e que esta dormia de um lado da cama, a mulher do
outro lado e ele no meio.
Numa visita a sua casa ele apresentou-me a sua amante russa que estava bem escondida e
protegida nuns gavetões desconchavados de um armário velho e que era, nem mais nem menos, uma Kalashnikov² que mantinha como troféu de um espólio sacado aos “turras” nas matas do norte de
Angola.
Outros, ainda, têm pesadelos que estão a arder nas chamas
do inferno e esse inferno não é mais que as palhotas das tabancas que, eles atearam fogo, para queimarem vivos os “turras” aí acoitados.
E por aí adiante, um sem fim de histórias macabras que,
sendo umas verdadeiras, outras meias verdadeiras e, evidentemente, outras sem
verdade nenhuma, darão para entender o drama psicótico que estas criaturas, e
aquelas que, vivendo a seu lado, sob o mesmo teto, terão de suportar durante
longo tempo das suas vidas senão até ao fim delas.
As Mães que antes não casavam as filhas, por impedimento da
guerra, vão agora casá-las com os traumas latentes dissimulados com juras de
amor eterno feitas no altar sob diáfanos véus, «até que a morte os separe», carregando, também elas, a pesada cruz
que ambos levarão ao calvário, até que a morte os consuma.
Para a rapaziada da rendição individual, assim como para os
Comandos e restante tropa empinada, fora-lhes
reservado os camarotes mas, como
fomos os últimos a chegar, estes já estavam ocupados pela tropa macaca que chegou primeiro. Foi uma confusão. Não quiseram
sair do bem-bom e tivemos que ir
instalar-nos em tarimbas improvisadas num dos porões. O que nos valeu, para mal
dos seus pecados, é que alguém influente tomou providências junto das chefias e
eles tiveram de ‘saltar’ dos
camarotes da terceira classe e ir ocupar as tarimbas de madeira bichosa para
onde nos tinham empurrado.
O Oceano tem estado um pouco agitado. As ondas encapeladas
fustigam a proa do navio que, não obstante ser muito grande, baloiça muito. A
carga dos porões, sendo humana, não é suficientemente pesada para estabilizar o
navio.
O comer tem sido muito bom e com fartura, acompanhado de
vinho à descrição e fruta. Eu tenho comido com bastante apetite, para ver se
chego com outro aspeto, que não este macilento do cacimbo, junto dos meus.
Tem havido cinema todas as noites no convés da ré e ontem
gostei muito do filme que foi muito a propósito; «O Adeus às Armas», de David O. Selznick,
baseado no romance de Ernest
Hemingway, que conta a história de um grande amor em
ambiente de guerra, com Rock Hudson, Jenifer Jones, Vittorio De Sica e Alberto Sordi. Anteontem deu outro filme de amor com Cary Grant e Deborah Kerr, «O Grande Amor da Minha Vida». Tem sido assim todas
as noites, com a exibição de filmes a enternecer o coração da rapaziada.
Fala-se que hoje o jantar vai ser
melhorado, talvez por ser 0 últim0 a ser-nos servido a bordo.
Tenho gasto algum dinheiro que não
contava gastar. Como por aqui tem aparecido alguns tripulantes a vender artigos
de contrabando em conta, senti-me compelido a comprar, entre outros, um relógio
da marca “Seiko” de corda automática e um isqueiro “Ronson”. Não é que tenha
necessidade destes objetos; alguns não passam de simples bugigangas que, para
além de servirem para gastar o pouco dinheiro que tenho, também servem para
ajudar a gastar o tempo que ainda falta para chegar que, faltando pouco, parece
uma eternidade.
__________________
¹ [Eram as criadas de servir
que, vindas da província, muito novinhas, à procura de melhor sorte, pululavam
nas grandes cidades. Era trivial ver-se o magala
de farda cinzenta e a criada de avental, gola e touca brancos no derriço pelos
recônditos dos bairros da cidade. Salvo a devida distância entre os extremos, e ainda que mal
comparado pareça, o “magalinha” estava
para a “sopeirinha” como hoje o
jogador de futebol está para a modelo.]
² [Espingarda automática de origem russa denominada de AK47,
mais conhecida pelo sobrenome do seu inventor Mikhail Kalashnicov, muito
utilizada pela guerrilha nos teatros de guerra de Angola, Moçambique e Guiné.]