segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

INDICE

 do «Adeus até ao meu regresso
  
ao  regresso dos que em vão partiram

 lembrando os que em vão tombaram.








DUPLA GRATIDÃO


àquela velhinha que, muito esforçada, até avançada idade,
desde o sol nascer até ao sol-pôr, à torreira do calor,
à chuva, ao vento, ao frio; curvada pelo peso da vida e do «foicinho»,
 -comendo o pão que o diabo amassou com o seu sangue, suor e lágrimas-
roçou, no monte, carradas de mato,
para criar os seus netinhos com o pão
abençoado de cada dia.

a minha Avó
   muito suor e lágrimas deixei naqueles montes para vos criar: 
                                                                                        dizia-nos ela 

 
apesar de tudo, foi ele que, com o seu parco salário semanal,
sustentou os filhos, a Mãe e a mulher os educou e lhes incutiu
o sentido da responsabilidade, do respeito,
da moral e da verdade, do trabalho.
À refeição eram seis pratos na acanhada mesa e a comida nunca faltou: 
se não bastava, era da sua marmita do almoço do dia seguinte que se dividia.   
O seu carácter, abrupto e inconstante,
ter-se-á moldado à vida escabrosa do seu tempo.
Também ele, muitas vezes,
terá comido o pão que o diabo amassou.

o meu Pai

«Da corrente do rio que tudo arrasta se diz que é violenta,
mas ninguém chama de violentas às margens que o comprimem».
                          Brecht                                           

tal como eu, e toda a mocidade de então na flor da sua juventude,
cumpriram o serviço militar;
com a sorte, porém, de não terem ido
«malhar com os costados»
à guerra das Colónias.

                                                     os meus irmãos


o João Pedro e a Rosinha que são o meu filho e a minha mulher.
                             A Rosa foi minha madrinha de guerra
                             e nunca me perdoou ter regressado da Guiné sem uma simples lembrança.
                             Que sovina, imperdoável a minha falta, reconheço.
                         Ofereço-lhe agora estas memórias com muito amor e carinho.

                                Dizia-lhe um namorado desse tempo:
                              não sejas madrinha de guerra
                              que acaba sempre em namoro com pedido de casamento


                                     a mim por existir, simplesmente.


domingo, 18 de fevereiro de 2018

Três dias depois, já em casa.

Viagem de regresso – Navio UÍGE – Camaradagem à hora da refeição






Ao fim de infindáveis sete dias de navegação, o navio UÍGE atracou ao paredão do cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, ao fim da manhã do dia seis de Novembro.
Muito cedo, ainda mal o sol raiava, começamos a vislumbrar, a levante, uma silhueta mal definida envolta em neblina que atravessava o Tejo apenas estando a descoberto, a estibordo e a bombordo, o alto das duas torres, logo se ouvindo da malta, acabada de subir dos porões infectos, uma explosão de algazarras esfuziantes de alegria:
 É a Ponte! É a Ponte…! É a Ponte Salazar!
 Viva a “peluda”! Viva! Viva! Olé, lé, lé…! Olé, lé, lé…!
A sua silhueta ia-se tornando mais visível à medida que o navio se aproximava e, com grande ansiedade, todos esperávamos cruzá-la, mas nunca mais era vencida a distância que nos separava, parecia até que o barco tinha abrandado a velocidade. 
Passado um tempo infinito, a proa do navio começava a alcançar a medonha sombra transversal, ondulante, projetada na água, a jusante, pelo efeito da luz da manhã e em silêncio, muitos de pescoço esticado, de nariz pró ar, em grupinhos, junto aos mastros do navio aguardavam com expectativa o cruzar dos mesmos sob a imponente estrutura de aço. Alguns diziam, cheios de angústia, que o navio não vai passar e os mastros vão tocá-la. À medida que cada um dos mastros a ia cruzando, para levante, havia uma grande manifestação de júbilo expressa em vivas de alegria esfuziante, altos gritos de exaltação, saltos e danças estonteantes:
 Viva a Ponte Salazar! Viva a “peluda”! Olé, lé, lé…! Olé, lé, lé…!    
Pouco depois, houve como que um total esmorecimento, quebrando aquele encanto de felicidade, aumentando ainda mais a ansiedade que envolvia os nossos corações, ao sabermos que o navio fundeava ao largo, espalhando-se a notícia que por causa de outro navio que estava prestes a partir. Para maior angústia e desespero, começava a formar-se uma névoa sobre as águas do Tejo, envolvendo o navio e as nossas almas.
Para trás, de braços abertos, a estibordo, lá do alto do Seu pedestal, como que do cimo de uma nuvem, ficava o Cristo Rei a anunciar-nos as boas-vindas e a abençoar-nos:
«Rejubilem os vossos corações; alegrem-se os céus e a terra.»

O desembarque dos militares prolongou-se até ao início do começo da tarde, gerando-se muita confusão. Todos queriam desenfiar-se ao mesmo tempo, tal era a ânsia de se libertarem das amarras e abraçarem os seus familiares que os esperavam em terra firme, até que os comandantes das Companhias começaram a por alguma ordem no desembarque.
Foram constituídos grupos de desembarque, por Companhias, coordenados pelas chefias o que, para manter alguma ordem, causou algum atraso, sendo o meu grupo, talvez por ter sido o último a embarcar, o último a sair. 
Quando bati o tacão das botas em chão firme, e me fui afastando do barco ao encontro dos meus familiares, e à medida que o recinto do cais se esvaziava e serenava da eufórica êxtase dos ais: – meu rico filho; dos suspiros: – meu amor que voltaste, ai que saudades; dos beijos infindáveis; dos corpos enlaçados em sacudidos e chorosos abraços, comecei a sentir a sensação agradável do odor que pairava no ar que respirava. Sensação esta totalmente oposta àquela que senti, precisamente, dois anos antes, quando desembarquei em Bissau.
 À medida que caminhava, parecia-me que tudo estava diferente; que tudo tinha mudado neste longo período de tempo.
Todavia, tudo estava na mesma, nada tinha mudado. Mantinha-se a mesma rotina: – uns acabavam de chegar; – outros, já tinham partido, pela manhã.
Tudo parece não ter sido mais que um longo sonho entrecortado por pesadelos dum sono profundo do qual acordava, ali, naquele momento e ao espraiar o olhar perdido no vazio por entre a bruma fria de uma longa manhã de Outono que se adensava pelo cais eis que ali estavam, hirtas, as mesmas almas, com um sorriso extasiado, como se fossem estátuas vivas e dali não tivessem arredado pé desde a hora da despedida, do «adeus até ao meu regresso», e estivessem, durante todo este tempo, à cabeceira de um moribundo que acordava de um coma profundo.

Do lado da 24 de Julho, ouve-se o rilhar, sobre os carris, dos elétricos das carreiras de Belém, Algés, Dafundo e Cruz Quebrada. Por instantes o ar é atravessado pelo ruído tracejante de dois comboios que se cruzam e rolam com destinos opostos: um, quase a chegar ao Cais do Sodré; o outro, terá paragens em mais algumas estações, até chegar a Cascais. As chaminés das tabernas e das tascas, do lado de lá da avenida, libertam e espalham pelo ar um suave aroma a guisados e petiscos que aguça o apetite a qualquer dos nossos estômagos já vazios; do lado de cá já se sente o cheiro da castanha assada e ouve-se o pregão: - «Ó quentes e boas».
Mais acima, subindo com o olhar, degrau a degrau, patamar a patamar, a soberba escadaria para o miradouro de farta vista panorâmica sobre o estuário do Tejo  pejado de navios da rota dos bacalhoeiros e do Ultramar, a jusante, com um vai e vem de encontros cruzados sob a ponte Salazar; fragatas à vela e barcos cacilheiros das travessias para a outra banda, a montante; as docas desde o Cais das Colunas até à Torre de Belém e sobre este cais, que lhe dá o nome, de profundas tristezas, muitas saudades e grandes alegrias, até para além dos braços do Cristo Rei, até a vista e a imaginação se perderem.
Subindo mais o olhar, atravessando o jardim do miradouro; a Pampulha e as Janelas Verdes e, inclinando a cabeça para trás, olhando por cima da densa copa das árvores do jardim; a beijar o céu e a Estrela, a sobranceira encosta dos Prazeres, da Lapa e da Madragoa, com os seus velhos palacetes e casario em íngremes ruas e ruelas, que os últimos raios de sol ainda teimam em aquecer e iluminar as varandas floridas das trapeiras das águas-furtadas sobre os telhados vermelhos destes bairros lisboetas. 

Ouço um camarada que caminha a meu lado gritar para outro que segue mais à frente:

Eh pá! Cheira bem! 
O outro responde:                                 
        «Pois cheira! Cheira Lisboa!» 

domingo, 21 de janeiro de 2018

Até que a morte os separe


        1968 
        04 de Novembro         
        Segunda-feira, 16h00





      Navio UÍGE. Com cinco dias de viagem, neste grande navio, eu e todos os camaradas, esperamos com suprema ansiedade o último dia, para alcançar a tão almejada liberdade. Estamos convencidos que este dia é amanhã e hoje a última noite. Também se houve dizer que desembarcamos na Quarta-feira de manhã. Outros dizem de tarde, porque o barco se atrasou devido à pouca carga que transporta nos porões.
       A viagem, para mim, tem sido ótima e para todos os camaradas que viajam comigo neste camarote que tem o número 333. 
       Há alguns camaradas que têm passado um mau bocado com o enjoo.
                                                                A festejar o regresso

Este grande navio, da nossa Marinha Mercante, levantou âncoras na Quinta-feira, dia 31, às duas horas da madrugada e embarcamos no dia anterior às 20 horas.
Aquilo…! Nunca vi tanta pressa e confusão! Parecia um verdadeiro êxodo! O navio UÍGE estava fundeado ao largo por o cais não tem profundidade suficiente para navios deste calado e, todos nós, conjuntamente com as bagagens, fomos transportados, até ele, nas barcaças da Marinha.
A rapaziada da CCS, do Quartel-General, foi para o cais às 14 horas de Quarta-feira, embora só começasse-mos a embarcar às 20, por ter havido o carregamento de outras cargas para os fundos dos porões e ter atrasado o embarque da maior parte das Companhias operacionais.
Enquanto esperávamos pelo sinal para nos formarmos iam-se trocando comentários, neste ou naquele grupinho, uns de pé, outros sentados na bagagem, a pouca distância uns dos outros.
Um dizia:
        - Eh pá, já tenho saudades dos bifes da Portugália!
Logo outro atacou:
- E eu das canecas!
- E eu das sopeirinhas¹ de Lisboa!
Ironizou ainda outro.
- Ai que saudades eu tenho do cheiro do ar da serra e dos montes da minha terra; do cheiro da carqueja, do carrasco, da urze… e falava da prometida que ficou, entre serras, à sua espera, tecendo entre outros predicados, que era a moça mais graciosa da aldeia.
Acometendo logo um de seguida com a “boca” do costume:
- Eh pá! Estás pr’aí com essa lengalenga e a esta hora já ela caiu nos braços doutro morcão!
Outro deixava transparecer, através do brilho que emanava dos seus olhos, a ansiedade que corria em sua alma para apertar nos braços o filho, já grandote, que não conhecia.
Há sempre nestes grupos um ou dois gajos à espera de uma deixa para “mandar bocas” e logo começou um com a frequente “boca foleira” que, não vou aqui referir, por acatamento ao desafogo do camarada. 
Havia um que dizia, com os olhos rasados em lágrimas, não sentir grande alegria em voltar, pois já não tinha o Pai e a Mãe à sua espera como os tivera à partida na hora da despedida. O Pai terá morrido, ao que diz, de desgosto e a Mãe, pouco tempo depois, ‘caiu’ numa cama não mais se levantando. Espera, com o seu regresso, que ela volte a andar para irem, em promessa, rezar a Fátima.

Despedi-me de todos os camaradas e superiores da secção. O meu chefe, à surdina, ainda me ‘prega’ um sermão que, cá para mim, encaixei por conter algumas verdades, embora, como é óbvio, não gostasse nada deste «puxão de orelhas». 
Nestas idades, quando se tem pouco mais de 20 anos, não gostamos muito de ouvir estes «lembretes». Somos novos, rebeldes e irreverentes; ateamos as nossas fogueiras com o fogo da alma e depois queimamo-nos. Temos, ainda, uma vida a vencer pela frente e muitas vezes, senão quase sempre, pagamos por isso, mas ao menos que saibamos reconhecer e daí fazer a necessária aprendizagem para que, no futuro e no momento próprio, possamos corrigir as nossas ações.  
O furriel Oliveira, o cabo Nora, o cabo Orestes e outros camaradas, foram despedir-se de mim ao cais. Também aqui, o cais estava repleto de camaradas a despedirem-se dos que partiam a caminho da “peluda” e, com certeza, a rezarem para que o seu regresso esteja para breve.
Bem! Tudo ficou para trás! Não levo saudades comigo e, com certeza, também não terei deixado nenhumas! Muita coisa, senão tudo, será para esquecer. Não há boas recordações e creio que poucos as levarão. 
Se alguma vez quiser recordar, deitarei mão deste diário e de outros apontamentos em folhas soltas, se a memória me falhar. E, porque Stendhal é senhor da seguinte citação: «um livro é um espelho que se passeia ao longo de um caminho. Tão depressa reflete aos nossos olhos o azul do céu, como o lodo dos lamaçais das bermas», só Deus sabe se, num longínquo dia, com base nestas narrativas, valerá a pena escrever umas memórias. 
Neste período de tempo, se bem, (mal), ajuízo pelas narrativas apocalípticas contadas à mesa dos cafés e esplanadas, pelos heróis do ‘mato’; pelos heróis do blá, blá, blá das Repartições do ar condicionado…, muitos levarão consigo traumas e pesadelos que os consumirão para o resto das suas vidas.
Quando vagueava pelas ruas de Lisboa, ficava impressionado quando via alguns indivíduos a atirarem-se para o chão, e rastejarem à procura de um abrigo num qualquer obstáculo, ao estrondo de qualquer ratter produzido por um escape de automóvel mais ruidoso.
Um meu vizinho regressou de Angola sem uma orelha que lhe foi arrancada à dentada por um “turra”, numa luta de corpo-a-corpo. Mas, ele exibia como troféu, e a modos de compensação, duas orelhas negras, cortadas a sabre, dentro de um frasco, mergulhadas em formol.
Ouvia contar casos de indivíduos que dormiam com granadas debaixo da cama com medo que os “turras” lhes batessem à porta a acertar contas.
Contou-me um, em jeito de anedota, que tinha uma amante russa e que esta dormia de um lado da cama, a mulher do outro lado e ele no meio.
Numa visita a sua casa ele apresentou-me a sua amante russa que estava bem escondida e protegida nuns gavetões desconchavados de um armário velho e que era, nem mais nem menos, uma Kalashnikov² que mantinha como troféu de um espólio sacado aos “turras” nas matas do norte de Angola.  
Outros, ainda, têm pesadelos que estão a arder nas chamas do inferno e esse inferno não é mais que as palhotas das tabancas que, eles atearam fogo, para queimarem vivos os “turras” aí acoitados.
E por aí adiante, um sem fim de histórias macabras que, sendo umas verdadeiras, outras meias verdadeiras e, evidentemente, outras sem verdade nenhuma, darão para entender o drama psicótico que estas criaturas, e aquelas que, vivendo a seu lado, sob o mesmo teto, terão de suportar durante longo tempo das suas vidas senão até ao fim delas.   
As Mães que antes não casavam as filhas, por impedimento da guerra, vão agora casá-las com os traumas latentes dissimulados com juras de amor eterno feitas no altar sob diáfanos véus, «até que a morte os separe», carregando, também elas, a pesada cruz que ambos levarão ao calvário, até que a morte os consuma.
Para a rapaziada da rendição individual, assim como para os Comandos e restante tropa empinada, fora-lhes reservado os camarotes mas, como fomos os últimos a chegar, estes já estavam ocupados pela tropa macaca que chegou primeiro. Foi uma confusão. Não quiseram sair do bem-bom e tivemos que ir instalar-nos em tarimbas improvisadas num dos porões. O que nos valeu, para mal dos seus pecados, é que alguém influente tomou providências junto das chefias e eles tiveram de ‘saltar’ dos camarotes da terceira classe e ir ocupar as tarimbas de madeira bichosa para onde nos tinham empurrado.
O Oceano tem estado um pouco agitado. As ondas encapeladas fustigam a proa do navio que, não obstante ser muito grande, baloiça muito. A carga dos porões, sendo humana, não é suficientemente pesada para estabilizar o navio.
O comer tem sido muito bom e com fartura, acompanhado de vinho à descrição e fruta. Eu tenho comido com bastante apetite, para ver se chego com outro aspeto, que não este macilento do cacimbo, junto dos meus.
Tem havido cinema todas as noites no convés da ré e ontem gostei muito do filme que foi muito a propósito; «O Adeus às Armas», de David O. Selznick, baseado no romance de Ernest Hemingway, que conta a história de um grande amor em ambiente de guerra, com Rock Hudson, Jenifer Jones, Vittorio De Sica e Alberto Sordi. Anteontem deu outro filme de amor com Cary Grant e Deborah Kerr, «O Grande Amor da Minha Vida». Tem sido assim todas as noites, com a exibição de filmes a enternecer o coração da rapaziada.
Fala-se que hoje o jantar vai ser melhorado, talvez por ser 0 últim0 a ser-nos servido a bordo. 
      Tenho gasto algum dinheiro que não contava gastar. Como por aqui tem aparecido alguns tripulantes a vender artigos de contrabando em conta, senti-me compelido a comprar, entre outros, um relógio da marca “Seiko” de corda automática e um isqueiro “Ronson”. Não é que tenha necessidade destes objetos; alguns não passam de simples bugigangas que, para além de servirem para gastar o pouco dinheiro que tenho, também servem para ajudar a gastar o tempo que ainda falta para chegar que, faltando pouco, parece uma eternidade.  


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¹ [Eram as criadas de servir que, vindas da província, muito novinhas, à procura de melhor sorte, pululavam nas grandes cidades. Era trivial ver-se o magala de farda cinzenta e a criada de avental, gola e touca brancos no derriço pelos recônditos dos bairros da cidade. Salvo a devida distância entre os extremos, e ainda que mal comparado pareça, o “magalinha” estava para a “sopeirinha” como hoje o jogador de futebol está para a modelo.] 

² [Espingarda automática de origem russa denominada de AK47, mais conhecida pelo sobrenome do seu inventor Mikhail Kalashnicov, muito utilizada pela guerrilha nos teatros de guerra de Angola, Moçambique e Guiné.]